Roy Wilkins, secretário executivo da NAACP, em 28 de agosto de 1963, na Grande Marcha Pelos Direitos Civis, em Washington, dizia, referindo-se à morte no dia anterior, em Gana, de W. E. B. Du Bois:


“... é incontroverso o fato de que desde o alvorecer do século vinte ele foi a voz chamando cada um de vocês para este encontro de hoje”.


 

Depois de já posto na Internet o material que aos poucos foi compondo o Projeto Cultural Dacosta escrevi uma matéria para se inserir em dacostaex.com, com o titulo Um presidente negro na América [1] . Isto foi feito ao tempo em que estava em evidência a possibilidade de vir o então general Colin Luther Powell, secretário de Estado, dos EUA, a se candidatar à presidência de seu país.
Eu possuía em meio a um material antiguíssimo, o exemplar de junho de 1971, de Sepia Magazine, uma das publicações dos anos de luta dos afro-americanos por seus direitos civis plenos. Também, eu havia lido, muitos anos antes, de Irving Wallace, o livro, The Man (O Homem), uma ficção, como já fizera antes Monteiro Lobato em O Presidente Negro [2] , sobre tal evento nos EUA.
Todavia, o principal motivo que levou o PCD a traduzir e publicar o discurso do atual candidato afro-americano, o primeiro com reais chances de vencer, se insere em um dos objetivos originais do Projeto: tornar acessível, a quem não domine a língua inglesa, material sobre a obra de escritores ou agentes históricos de ascendência africana; ou mesmo, para os que a dominam e que tenham interesse nesses temas, oferecendo indicações de como ampliar pesquisa.
O atingimento deste objetivo tem sido constatado pelo expressivo número de visitantes reiterados às páginas de dacostaex.com/pcd.html, com identificadores de origem que situam os pesquisadores em universidades dos Estados Unidos (11% dos acessos), Peru, Portugal, Finlândia, Itália, Tailândia, Nova Zelândia, Moçambique, Cabo Verde, Austrália, Alemanha, Holanda, França, República Tcheca, Andorra, Inglaterra, Suíça, Hungria, e, naturalmente, Brasil (média de 80% dos acessos).
O exame atento do material que consta do PCD, com exaustivas traduções feitas ao longo do tempo, de relevantes trabalhos históricos e literários norte-americanos, material indisponível nas livrarias ou mesmo em importantes bibliotecas brasileiras, evidencia o interesse diletante do tradutor em tornar disponível, o máximo possível, o pensamento que ali se contém.
O discurso sobre raça que Barack [3] Obama se viu obrigado a proferir em sua caminhada que visa à Presidência de seu país, é uma peça que se insere dentro de “As Almas do Povo Negro [4] ”, que W. E. B. Du Bois escreveu no início do século vinte. Ele se liga ao ritmo poético de James Weldon Johnson, ao histórico e enérgico escrever de Lorene Benntett Jr., ao dizer canônico de pregadores, como Martin Luther King Jr. Seu perfil de homem religioso e freqüentador do culto protestante dos domingos e habitué da vida comunitária paroquial, se liga aos tipos e situações do ensaio de James H. Cone [5] , também neste PCD.
Portanto, mais do que o registro de um afro-americano que chega bem perto da Casa Branca (quando se escreve este texto, março 2008), seu discurso se insere, de forma didática, dentro do Projeto Cultural Dacosta.
Assim se manifestou Barack Obama (em www.barackobama.com/tv/ se quiser ouvir o discurso original):
 
 

 

 

Nós o Povo, para alcançarmos uma União mais perfeita... [6]

 

Duzentos e vinte e um anos atrás, no saguão que ainda se mantém, num cruzar de rua, reuniu-se um grupo de cidadãos que, com aquelas palavras simples, inauguraram o fantástico experimento americano em democracia. Homens do campo e acadêmicos; estadistas e patriotas que haviam cortado o oceano, escapando da perseguição e da tirania, finalmente tornaram realidade sua Declaração de Independência, na convenção de Filadélfia, ao longo da primavera de 1787.

 

O documento que produziram foi, enfim, assinado, mas ficou inacabado. Foi maculado pelo pecado original desta Nação, a escravidão – questão que dividiu as colônias e levou a convenção a um impasse, até que os Fundadores optaram em permitir a continuação do tráfico por, pelo menos, mais vinte anos; deixando qualquer solução para gerações futuras.

 

Mas, é certo, a solução para o impasse escravidão, se encontrava bem no cerne de nossa Constituição – Constituição que em seu âmago tinha o ideal de igual cidadania  sob a lei; uma Constituição que prometia a seu povo liberdade e justiça e a união que poderia e deveria ser aperfeiçoada com o passar do tempo.
 
A mais, palavras num pergaminho não seriam o bastante para libertar os escravos da servidão, ou assegurar a homens e mulheres de todas as cores e credos seus plenos direitos e obrigações como cidadãos dos Estados Unidos. Seria necessário que americanos em sucessivas gerações, dispostos a desempenhar seu papel – por meio de protestos e contendas nas ruas e nas cortes, por meio de uma guerra civil e de desobediência civil, sempre correndo grandes riscos – estreitassem o fosso existente entre promessas de nossos ideais e a realidade de seu tempo.

 

Esta foi uma das missões a que nos propusemos no início desta campanha – continuar a longa marcha daqueles que nos antecederam; uma caminhada por uma América mais justa, mais igual, mais livre, mais generosa e mais próspera. Eu me decidi por candidatar-me à Presidência neste ponto da história por que acredito profundamente que não conseguiremos resolver os desafios de nosso tempo, a menos que os resolvamos juntos – a menos que arrematemos nossa união pelo entendimento de que podemos possuir diferentes origens, mas retemos esperanças em comum; que podemos não ser parecidos e não viemos do mesmo lugar; mas todos desejamos caminhar na mesma direção – no rumo de um melhor futuro para nossos filhos e netos.

 

Essa crença vem de minha inflexível fé na decência e generosidade do povo americano. Mas vem também de minha própria história como americano.
 

 

Sou filho de um negro natural do Quênia e de uma branca nascida em Kansas. Fui criado com o auxílio de um avô branco que sobreviveu à Depressão servindo no Exército de Patton [7] , durante a Segunda Guerra Mundial, e da avó também branca que trabalhou numa fábrica de aviões de guerra, em Fort Leavenworth, enquanto ele esteve no exterior. Freqüentei algumas das melhores escolas na América e vivi num dos países mais pobres do mundo. Sou casado com uma negra americana que carrega em seu sangue a mistura do sangue de escravos e donos de escravos – uma herança que transmitimos às nossas duas queridas filhas. Tenho irmãos, irmãs, primas, sobrinhos, tios e primos, de todas as raças e nuanças, espalhados por três continentes, e, enquanto eu viver, jamais esquecerei que em nenhum outro país do mundo minha história seria concebível.
 

 

É uma história que não fez de mim o candidato mais convencional. Mas é a história que marcou em minha imagem a idéia de que esta nação é mais do que a soma de suas partes – que a partir de tantos, somos verdadeiramente unos.

 
Ao longo do primeiro ano desta campanha, contra todas as previsões em contrário, vimos quão ansioso se encontrava o povo norte-americano por esta mensagem de união. Apesar da tentação de ver minha candidatura através de um viés puramente racial, conseguimos vitórias em estados com as mais densas populações brancas do país. Na Carolina do Sul, onde a bandeira dos confederados ainda tremula, montamos uma poderosa coalizão de afro-americanos e brancos.
 
Isto não significa que raça não tenha sido um tema desta campanha. Em vários de seus estágios, alguns comentaristas me rotularam como “negro” ou como “não negro o bastante”. Vimos tensão racial efervescendo à superfície durante a semana que antecedeu às primárias da Carolina do Sul. A imprensa esmiuçou qualquer das prévias, em busca de evidencias de polarização racial, não apenas em termos de branco e negro, mas negro e mulato, também.
 
Apesar disto, foi apenas nas últimas semanas que o foco sobre raça nesta campanha tomou um rumo decisivo.

Numa linha final do espectro, ouvimos que o envolvimento em minha candidatura seria, de alguma forma, um exercício de ação afirmativa, ou seja, baseado somente no desejo de liberais expertos em comprar a reconciliação racial a baixo custo. Noutro final, ouvimos o meu ex-pastor, reverendo
Jeremiah Wright [8] ,usar incendiariamente certa linguagem para expressar pontos-de-vista que têm o potencial de não apenas alargar a divisão racial, mas que também mancham tanto a grandeza quanto a bondade de nossa nação – e que ofenderam, com razão, igualmente a brancos e negros.
 
Eu já condenei, em termos inequívocos, as declarações do reverendo Jeremiah Wright, que causaram tanta controvérsia. Todavia, algumas questões ainda ficam remoendo. Eu sabia que ele era ocasionalmente um feroz crítico das políticas internas e externas dos Estados Unidos? Claro. Não teria, enquanto sentado em sua igreja, jamais ouvido seus pontos-de-vista controversos? Sim. Discordei firmemente com muitas de suas idéias? Completamente – da mesma forma que, tenho certeza, muitos de vocês já ouviram opiniões de seus pastores, padres ou rabinos com as quais fortemente discordavam.
 
Mas as opiniões que causaram o recente temporal não eram simplesmente controversas. Não eram apenas o esforço de um líder religioso em levantar sua voz contra a injustiça. Ao contrário, expressaram uma profundamente distorcida visão deste país – uma visão que vê o racismo dos brancos como endêmico, e que eleva aquilo que está errado nos Estados Unidos acima de tudo o que sabemos de bom que há no país; uma visão que vê os conflitos do Oriente Médio ligados primariamente nas ações de poderosos aliados como Israel, ao invés de nascerem de ideologias perversas e odiosas do radical islã.
 
Como tal, as assertivas do reverendo Wright não eram apenas equivocadas, mas também divisíveis – divisivas num tempo em que necessitamos de união; racialmente carregadas, num tempo em que precisamos estar juntos para resolver um conjunto de fantásticos problemas: duas guerras, uma ameaça terrorista, uma economia em declínio, uma crônica crise na saúde pública e uma potencialmente devastadora mudança no clima; problemas que não são nem dos negros, ou dos brancos ou dos latinos ou dos orientais; em verdade, problemas que a todos nos desafiam.
 
Meu passado, minha agenda política, os valores e ideais que professo, servirão para aqueles a quem apenas minha condenação não seja bastante. Por que me associar ao reverendo Wright? Indagarão em primeiro lugar. Por que não freqüentar outra igreja? E eu confesso que se tudo quanto eu conhecesse do reverendo Wright fora os fragmentos daqueles sermões, repetidos ao infinito, nos noticiários de televisão ou no You Tube, ou se Trinity United Church of Christ se adequasse às caricaturas sendo futricadas por certos jornalistas, não haveria dúvida, eu reagiria da mesma forma.
 
Mas a verdade é: isto não era tudo que eu conhecia do homem. O homem que eu encontrei há mais de vinte anos foi aquele que me ajudou a introduzir-me a fé Cristã, o homem que me falou sobre nossas obrigações de amarmo-nos uns aos outros; cuidar dos doentes e dar uma mão aos pobres. Ele é um homem que serviu à sua pátria, como fuzileiro naval; que estudou e lecionou em algumas das mais renomadas universidades e seminários do país, e que por mais de trinta anos conduziu a igreja que serve à comunidade em realizando a tarefa divina na Terra – abrigando os desalojados, servindo o ministério aos necessitados, prestando serviços comunitários, concedendo bolsas de estudo e sacerdócio prisional – confortando os pacientes de AIDS.
 
Em meu primeiro livro, Dreams From My Father [9] , descrevi a experiência de meu primeiro culto em Trinity [10] :
 
“As pessoas começaram a gritar, a levantar-se de suas cadeiras, a bater palmas e lamentar-se aos brados; um forte sopro de vento empurrava a voz do pastor até a cumeeira... E numa simples nota – esperança! – eu ouvi algo a mais; ao pé daquela cruz, dentro de incontáveis igrejas pela cidade, eu imaginei as histórias de negros comuns misturadas com as histórias de Davi e Golias, Moisés e o Faraó, os cristãos e a cova dos leões, o campo dos ossos secos, de Ezequiel. Essas histórias, de sobrevivência e liberdade, e esperança – tornaram-se nossa história, minha história; o sangue que [Ele] derramara, fora o nosso sangue, as lágrimas, nossas lágrimas; até esta igreja dos negros, neste glorioso dia, parecia ainda outra vez um navio carregando a história de um povo para novas gerações e para um novo mundo. Nossos sofrimentos e triunfos tornaram-se de imediato singulares e universais, negros e mais do que negros; em cronicando nossa jornada, as histórias e as canções deram-nos os meios de recuperar memórias das quais não nos envergonhamos... recordações que todos os povos devem estudar e cultivar com carinho – e com as quais poderemos começar a reconstruir”.
Esta foi minha experiência em Trinity. Como outras igrejas predominantemente dos negros, país afora, Trinity envolve a comunidade negra por inteiro – o doutor e a mãezona do serviço social, a estudante modelo e o ex-malfeitor. Como outras igrejas de negros, os cultos em Trinity são cheios de roufenhas risadas e comumente humor picante. São prenhes de danças, bater palmas, gritaria que pode parecer irritante para ouvidos não iniciados. A igreja abrange, por completo, bondade e crueldade, a ardente inteligência e a chocante ignorância, os desafios e os sucessos, o amor e sim, o amargor e a tendência que eleva a experiência dos negros nos Estados Unidos.
 
E isto ajuda a explicar, quem sabe, minhas relações com o reverendo Wright. Tão imperfeito quanto ele possa ser, ele foi como um de minha família. Ele fortaleceu minha fé, e batizou meus filhos. Nunca, em nenhuma de nossas conversas o vi falar de forma pejorativa quanto a qualquer raça ou tratou pessoas brancas com quem interagia senão de forma cortês e respeitosa. Ele guardava dentro de si as contradições – o bem e o mal – da comunidade que havia servido diligentemente por tantos anos.
 
Eu não posso rejeitá-lo mais do que rejeitaria a comunidade negra. Eu não posso rejeitá-lo mais do que rejeitaria minha avó – uma mulher que ajudou a criar-me, uma mulher que se sacrificou reiteradamente por mim, uma mulher que me ama tanto quanto qualquer coisa que ame neste mundo, mas uma mulher que certa feita confessou seu medo de negros passando por ela na rua, e que mais de uma vez verberou estereótipos raciais que fizeram sentir-me envergonhado.
 
Essas pessoas são parte de mim. E são parte dos Estados Unidos, esta terra que eu amo.
 
Alguns verão aqui uma tentativa de justificar ou desculpar assertivas que são simplesmente indesculpáveis. Posso garantir-lhes que não. Eu suponho que politicamente seguro seria seguir em frente a partir deste episódio e apenas esperar que ele esmaeça na moldura. Não podemos demitir o reverendo Wright por ser um excêntrico ou um demagogo, da mesma forma que despediram Geraldine Ferraro [11] , como conseqüência de recentes declarações, que abrigariam algumas profundas inclinações raciais.
 
Mas raça é um tema que, eu acredito, a nação não pode se dar ao luxo de ignorá-lo, agora. Estaremos incorrendo no mesmo erro do reverendo Wright em sermões ofensivos aos Estados Unidos: simplificar e estereotipar, e magnificar o negativo a tal ponto que distorça a realidade.
 
O fato é que os comentários que foram feitos e os assuntos que estiveram em evidência nas últimas semanas refletem as complexidades do tema raça neste país, que nunca foram realmente enfrentados – um pedaço de nossa união que ainda temos de aperfeiçoar. E se ignoramos isto, agora; se simplesmente nos recolhemos para os respectivos cantos, jamais seremos capazes de nos reunirmos e resolvermos os desafios como os da saúde pública, educação, ou a necessidade de bons empregos para todos os estadunidenses. Compreender esta realidade demanda recordar de que forma chegamos a tal ponto. Como William Faulkner escreveu: “O Passado não está morto e enterrado. Em verdade, não é sequer passado”. Não é necessário que recitemos aqui a história de injustiça racial neste país. Mas sim necessitamos nos recordar que tantas das disparidades que existem hoje na comunidade afro-americana têm sua origem traçada até às iniqüidades do passado, de uma geração anterior que sofreu sob a brutal herança da escravidão e de Jim Crow [12] .
 
Escolas segregadas eram, e ainda são, escolas inferiores; nós ainda não as corrigimos, cinqüenta anos após Brown x Board of Education [13] e a qualidade inferior do ensino que ensejavam, e ensejam ainda – ajuda a explicar o profundo fosso existente atualmente entre estudantes negros e brancos.
 
Discriminação legalizada – onde negros eram afastados, quase sempre com violência, de adquirirem propriedade; ou crédito que não era ensejado a comerciantes negros; ou negros possuidores de casa própria que não tinham acesso a créditos de mútuo hipotecário; ou negros eram barrados em sindicatos, serviços de polícia urbana, corporações de bombeiros – quer dizer, famílias de negros não conseguiam acumular qualquer riqueza substancial a fim de legar às futuras gerações. A história ajuda a explicar a distância entre riqueza e renda entre negros e brancos, e os bolsões de pobreza que teimam em persistir em tantas áreas das comunidades urbanas e rurais.
 
A falta de oportunidade econômica dentre os negros, e a vergonha e frustração que vêm pela impossibilidade de ser capaz de prover sua própria família tem contribuído para a erosão de famílias negras – um problema que políticas de assistência, ao longo de muitos anos, têm piorado. E a falta de serviços básicos em tantas vizinhanças de negros – pracinhas para as crianças, ronda policial, coleta regular de lixo e rigor em planos diretor urbano – todos ajudaram a criar um ciclo de violência, decadência e negligência que continua a nos assombrar.
 
Esta é a realidade em que o reverendo Wright e outros afro-americanos de sua geração cresceram [14] . Eles tornaram-se adultos nos estertores dos anos cinqüenta e nascer dos anos sessenta, tempo em que segregação ainda era a lei da terra, e chances eram sistematicamente restritas. Notável não é o registro de quantos falharam face à discriminação; mas quantos, homens e mulheres, foram capazes de superar as desvantagens; quantos foram capazes de encontrar uma saída, quando nenhuma se oferecia, assegurando caminho para aqueles que os seguiriam, como eu mesmo.
 
Mas, dentre todos os que tiveram de se arrastar para abocanhar um pedaço do Sonho Americano, houve muitos que não conseguiram – aqueles que foram, de uma ou outra forma, ao fim derrotados pela discriminação. Este legado de derrota foi passado adiante para futuras gerações: os meninos e, cada vez mais, meninas que encontramos desocupados nas esquinas ou definhando em nossos presídios, sem esperança ou perspectivas para o futuro. Mesmo para os negros que venceram, problemas raciais e racismo continuam a definir sua visão de mundo em modos fundamentais.  Para homens e mulheres da geração do reverendo Wright, as recordações de humilhação, dúvida e medo não se apagaram; tampouco o ódio e o amargor daqueles anos. O rancor pode não se manifestar em público, em frente aos colegas ou amigos brancos. Mas ganha voz nas barbearias ou à volta da mesa da cozinha. Às vezes, essa ira é explorada por políticos, para caçar votos ao longo das linhas raciais.
 
Ocasionalmente, também ganha voz no culto dominical, no púlpito e nos bancos das igrejas. O fato de tantas pessoas ficarem surpresas ao ouvir essa ira em certos sermões do reverendo Wright simplesmente nos recorda o antigo truísmo que assevera estar a hora mais segregada na vida norte-americana na manhã de domingo. Essa ira não é sempre produtiva; em verdade, comumente ela afasta a atenção para a solução dos verdadeiros problemas; nos mantém longe de justamente enfrentar nossa própria cumplicidade em nossa condição, e frustra a comunidade afro-americana de forjar a aliança de que necessita para efetivar uma verdadeira mudança.  Mas a raiva é real; é poderosa; e para simplesmente desejar que desapareça, para condená-la sem compreender suas raízes, serve apenas para ampliar o abismo de incompreensão que existe entre as raças.
 
De fato, uma raiva semelhante existe em meio a segmentos da comunidade branca. A maioria dos trabalhadores e classe média norte-americana consideram-se não devidamente privilegiados, embora sua raça. Sua experiência é a dos imigrantes. Em seu entendimento, ninguém os ajudou; tudo o que conseguiram foi a partir do nada. Eles trabalharam duro toda a sua vida, muitas vezes para ver seus empregos serem ocupados no além-mar, ou suas economias de aposentadoria desaparecerem após uma vida de trabalho. Eles estão ansiosos a respeito de seu futuro e sentem seus sonhos se esvaecerem; numa época de salários estagnados e competição global, oportunidades passaram a ser vistas como um jogo sem prêmio, no qual seus sonhos ficam  a meu encargo. Assim, quando lhes dizem para levar suas crianças para uma escola na periferia; quando ouvem que um afro-americano está obtendo vantagem em conseguir um bom emprego ou uma vaga numa escola de primeira, por causa de uma injustiça que eles mesmos nunca cometeram; quando lhes dizem que seus medos a respeito de crime nas vizinhanças urbanas são de algum modo preconceituosos – rancor se acumula.
 
Como a raiva em meio à comunidade negra, esses ressentimentos nem sempre são manifestados de forma polida. Mas têm ajudado a moldar a paisagem política, por pelo menos uma geração. Ira com relação às políticas sociais e às ações afirmativas ajudaram a forjar a coalizão que elegeu Reagan [15] . Políticos rotineiramente exploraram o medo do crime para seus propósitos eleitorais. Entrevistadores de rádio e televisão e comentaristas conservadores construíram suas carreiras desmascarando falsas reclamações de racismo, ao mesmo tempo em que descartavam discussões sérias a respeito de injustiças e iniqüidades sociais, como mera correção política, ou racismo reverso.
 
Da mesma forma que a ira comumente se mostrou contraproducente, igualmente o ressentimento de brancos distraíram a atenção sobre os verdadeiros culpados do aperto da classe média: uma cultura corporativa reina como uma conduta interior; práticas contábeis questionáveis e ganância a curto prazo; uma Washington dominada por lobistas e interesses particulares; políticas econômicas que favorecem poucos sobre a maioria. E, ainda, afastar os ressentimentos de americanos brancos, rotulá-los como desencaminhados ou mesmo racistas, sem reconhecer que eles estão assentados em interesses legítimos – isto também amplia a divisão racial, e fecha o caminho para a compreensão.
 
Nisto é que nos encontramos exatamente agora. Num empate forçado, racial, que assim se mantém por anos. Contrariamente aos reclamos de alguns de meus críticos, negros e brancos, nunca fui tão ingênuo a ponto de acreditar que podemos conseguir ir além de nossas divisões raciais em apenas um período eleitoral, ou com uma simples candidatura, particularmente uma candidatura tão imperfeita como a minha.
 
Mas eu tenho afirmado com convicção – uma convicção enraizada na minha fé em Deus e minha fé no povo dos Estados Unidos – de que trabalhando juntos poderemos avançar além de nossas feridas raciais, e que em verdade não temos escolha senão continuar no rumo de uma união mais perfeita.
 
Para a comunidade afro-americana, este rumo significa aceitar os fardos de nosso passado, sem que nos tornemos vítimas desse passado. Isto é, continuar a buscar justiça plena em todos os aspectos da vida americana. Mas isto significa em especial também somar nossas queixas – por melhor saúde pública, melhores escolas e melhores empregos – à majoritária aspiração dos norte-americanos: a mulher branca lutando por quebrar a barreira do sexo; o trabalhador branco que foi substituído; o imigrante que busca alimentar sua família. E isto significa assumir inteira responsabilidade por suas próprias vidas – demandando de nossos pais, destinando mais tempo para nossos filhos, lendo para eles, e ensinando-os que a um tempo poderão defrontar-se com desafios e discriminação, mas jamais deverão sucumbir ao desespero e ao cepticismo; deverão acreditar que sempre poderão traçar o seu destino.
 
Ironicamente, esta medularmente americana – e sim, conservadora – noção de auto-ajuda encontra freqüente expressão nos sermões do reverendo Wright.   Todavia, o que meu ex-pastor comumente não conseguia entender é que abraçar um programa de auto-ajuda também exige a crença de que a sociedade pode mudar.
 
O profundo engano dos sermões do reverendo Wright não é que hajam falado sobre racismo em nossa sociedade. É que eles falaram como se nossa sociedade fosse estática; como se progresso algum houvesse sido alcançado; como se este país – um país que tornou possível para um de seus paroquianos disputar o mais alto posto da hierarquia pública e estruturar uma coalizão de brancos e negros, latinos e asiáticos, ricos e pobres, jovens e idosos – ainda esteja irrevogavelmente atado a um passado trágico. Mas o que sabemos – o que se vê – é que os Estados Unidos podem mudar. Esta é a verdadeira índole da nação. O que já conseguimos dá-nos esperança – a audácia de esperar – pelo que poderemos e deveremos atingir no amanhã.
 
Na comunidade branca, o rumo para uma mais perfeita união significa reconhecer, o que aflige a comunidade afro-americana não existe apenas nas mentes dos negros; que o legado de discriminação – e correntes incidentes de discriminação, mesmo que menos expostos que no passado – são reais e devem merecer atenção. Não apenas com palavras, mas com ações – investigando em nossas escolas e comunidades; respeitando as leis de direitos civis e ensejando justiça em nosso sistema criminal; garantindo a esta geração oportunidades que não estiveram disponíveis às gerações anteriores. Isto requer que todos os norte-americanos compreendam que seus sonhos não devem se realizar às custas dos meus sonhos; que investir em saúde, previdência e educação das crianças negras, das crianças mulatas e das crianças brancas irá enfim ajudar os Estados Unidos a prosperarem.
 
Ao fim, então, apela-se por nada mais ou menos do que aquilo que todas as grandes religiões do mundo exigem: que se faça com o outrem aquilo que desejamos que fizessem conosco. Sejamos o guarda de nosso irmão, como nos dizem as Escrituras. Sejamos o guarda de nossa irmã. Que encontremos no outrem aquela estaca comum que cada um de nós possui, e deixemos nossos políticos, da mesma forma, refletir sobre este espírito.
 
Pois temos uma escolha neste país. Podemos acolher uma política que faz gerar divisão, conflito e cepticismo. Podemos lidar raça apenas como espetáculo – como ocorreu quando do julgamento de OJ [16] – ou no despertar de uma tragédia, como aconteceu por conseqüência do Katrina [17] – ou como alimento para os noticiários televisivos do entardecer. Podem-se rodar os sermões do reverendo Wright em qualquer dos canais, qualquer dia e mantê-los como assunto até o dia da eleição, e produzir a única questão da campanha: os norte-americanos crêem que eu de alguma forma acredite ou me solidarize com suas palavras mais ofensivas. Pode-se pinçar uma gafe de aliado de Hillary [18] como evidência de que ela está jogando com a carta do racismo, ou podemos especular se os brancos, todos, se unirão para apoiar McCain [19] na eleição, não obstante sua visão política.
 
Podemos agir assim.
Mas se assim o fizermos, posso dizer-lhes que na próxima eleição estaremos debatendo sobre outra atração. Então, outra atração. E ainda mais outra. E nada mudará.
 
Esta é uma opção. Ou, neste momento, nesta eleição, podermos nos juntar todos e dizer: “Desta vez não”. Desta feita queremos falar sobre a degradação das escolas, o que está roubando o futuro das crianças negras e das crianças brancas; das crianças hispânicas, das crianças nativo-americanas. Desta vez queremos rejeitar o cinismo que nos diz que essas crianças não merecem aprender; que essas crianças não se parecem conosco – são o problema dos outros. As crianças dos Estados Unidos não são essas crianças, elas são as nossas crianças, e não as deixaremos para trás na economia do século vinte e um. Não desta vez.
 
Desta vez queremos falar de como as filas nas salas de emergência [dos hospitais] estão cheias de brancos, negros e hispânicos, que não possuem planos de saúde; que não conseguem, individualmente, sensibilizar autoridades em Washington, mas que podem alcançar isto, se agirmos em conjunto.
 
Desta vez queremos falar sobre as fábricas desativadas, que um dia asseguraram uma vida decente para homens e mulheres de todas as raças; sobre as casas sendo vendidas e que ontem pertenceram aos norte-americanos de todas as religiões, de todas as regiões, de todas as maneiras de viver, Desta feita queremos falar sobre o fato de que o verdadeiro problema não é alguém que não se pareça com você venha a tomar seu emprego; é que a corporação onde você trabalha, apenas para obter mais lucro, transfira sua ocupação para o exterior.
 
Desta vez queremos falar a respeito de homens e mulheres de todas as cores e credos que servem juntos, que sangram juntos sob a mesma soberana bandeira. Queremos falar a respeito de como trazê-los de volta de uma guerra que nunca deveria ter sido autorizada, que nunca deveria ter sido empreendida, e desejamos falar sobre como iremos demonstrar nosso patriotismo, nos importando com eles e suas famílias, dando-lhes os benefícios a que fazem jus.
 
Eu não estaria disputando a presidência se não acreditasse com todo o meu coração que isso é aquilo que a grande maioria dos norte-americanos deseja para este país. Essa união pode nunca ser perfeita, mas gerações após gerações mostraram que poderá sempre ser aperfeiçoada. E hoje, quando me sinto indeciso ou céptico sobre essa possibilidade, o que me dá mais esperança é a nova geração – os jovens cujas atitudes e crenças e mente aberta para mudanças já assinalaram seu papel nesta eleição.
 
Tem uma história, em particular, que eu gostaria de deixar hoje com vocês. Uma narrativa que eu contei, quando tive a grande honra de falar no aniversário do Dr. King [20] , em sua igreja de origem, a Ebenezer Baptist, em Atlanta.
 
Lá estava uma jovem branca, trinta e três anos de idade, chamada Ashley Baia, coordenadora de nossa campanha em Florence, na Carolina do Sul. Ela matinha um trabalho de organização numa comunidade majoritariamente afro-americana, desde o início desta campanha. Um dia, Ashley participava de uma mesa-redonda, na qual todos os participantes passaram a contar suas experiências de vida e os motivos pelos quais estavam ali.
 
Ashley passou a contar que, quando tinha nove anos de idade, sua mãe foi diagnosticada com câncer. Assim, ela faltou vários dias a seu trabalho e perdeu a cobertura do seguro saúde. A família teve que postular falência civil. Foi quando Ashley tomou a decisão de que alguma coisa teria de fazer a fim de auxiliar sua mãe.
 
Ashley compreendeu que alimentação era o item mais caro a enfrentar, por isto ela convenceu sua mãe de que seria mais importante comer, mais que tudo, mostarda e sanduíches picantes. Em verdade, a decisão de Ashley foi tomada por que isso era o mais barato meio de se alimentar.
 
Ashley agiu assim por um ano, até que sua mãe começou a se sentir melhor. Então ela afirmou a cada um dos presentes à mesa-redonda que a razão de ela haver se juntado à campanha era para que pudesse ajudar milhões de outras crianças no país que também necessitam amparar aos seus pais.
 
Bom, Ashley poderia ter feito outra escolha. Talvez alguém lhe dissesse, em sua vida, que a fonte dos problemas de sua mãe seriam negros amparados pela previdência social, preguiçosos o bastante para trabalhar, ou hispânicos migrando ilegalmente para o país. Mas ela não agiu assim. Ashley buscou aliados em sua luta contra a injustiça.
 
De qualquer modo, Ashley conclui sua história e desloca-se pela sala, perguntando a cada um por que estava dando seu apoio à campanha. Todos possuem diferentes histórias e motivos. Muitos apresentam razões específicas. Finalmente, ela chega até um velhote negro que esteve ali, sentado quieto, todo o tempo. Ashley pergunta-lhe por que está ali. Ele não conta algo específico. Não fala sobre saúde ou economia. Não fala sobre educação ou guerra. Não diz que está ali por causa de Barack Obama. Diz, simplesmente, a todos os presentes: “Estou aqui por causa de Ashley”.
 
“Estou aqui por causa de Ashley”. Por si próprio este momento singelo de reconhecimento entre aquela jovem moça branca e o negro velho não é o bastante. Não é o bastante para dar assistência médica aos doentes, tampouco emprego aos desempregados ou educação às crianças.
 
Mas é onde tudo começa. É onde nossa união se torna forte. E como tantas gerações vieram a se realizar ao longo de duzentos e vinte e um anos, desde que um grupo de patriotas assinou aquele documento em Filadélfia, onde o aperfeiçoamento se iniciou.

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[1] Em www.dacostaex.net/pcd.html  item 26, em Passagem Africana.
[2] Pertinente ensaio de Roberto Pompeu de Toledo, revista Veja, sobre “O Presidente Negro”, de Monteiro Lobato pode ser lido em http://arquivoetc.blogspot.com/2008/03/roberto-pompeu-de-toledo_21.html
[3] Barack, em suaíle, língua também do Quênia, de parte de seus avoengos, quer dizer: abençoado.
[4] Tradução completa e prenhe de notas informativas em www.dacostaex.net/pcd.html
[5] James H. Cone, em http://www.dacostaex.net/pcd.html  
[6] Excerto do preâmbulo da Constituição do EUA, que afirma: ”We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America.
[7] General George Smith Patton, Jr. (1885-1945).
[8] Jeremiah Wright, pastor, entre outras coisas afirmou haver nos EUA “um empenho sistemártico para manter a gente negra na pobreza” Essa afirmativa e outras, foram recolhidas pela rede de televisão ABC em antigos sermões do pastor e postas no ar fazendo Barack Obana abordar a questão raça em sua campanha”. De um sermão de 2003, polemizou Wright: "O governo lhes dá as drogas, constrói prizões maiores, aprova leis mais rígidas e então nos pede para cantarmos o ‘Deus Salve a América”; não: almadiçoe a América, como diz a Bíblia, por exterminar gente inocente”..
[9]< Pode ser adquirido em http://www.amazon.com/s/ref=nb_ss_gw/105-0494627-9435634?url=search-alias%3Daps&field-keywords=Dreams+From+My+Father&x=12&y=19
[10] Para melhor conhecer o culto nas igrejas dos afro-americanos, clicar em James H. Cone, quando em http://www.dacostaex.com/pcd.html
[11] Candidata a vice-presidente dos Estados Unidos em 1984 e integrante da campanha de Hillary Clinton, foi afastada por comentários considerados raciais.
[12] Legislação racista existente nos EUA até a vitória da luta pelos direitos civis naquele país, nos anos 1960. Ver literatura de protesto no link WWW.dacostaex.com/pcd.html e também WEB Du Bois, no mesmo link.
13] Recomenda-se o filme Separados mas Iguais, com Sidney Poitier e Burt Lancaster, que aborda com fidelidade a atuação do advogado Thurgood Marshal (1908-1993), que viria a ser o primeiro ministro afro-descendente da Suprema Corte dos EUA, na defesa da verdadeira igualdade legal para os negros nas escolas públicas. Também em http://www.amazon.ca/Brown-v-Board-Education-Milestone/dp/0195127161
[14] Ver literatura de protesto no link WWW.dacostaex.net/pcd.html o conto “No Escuro e na Confusão”, de Ann Petry.
[15] Ronald Wilson Reagan (1911 – 2004), foi o 40° presidente dos EUA, entre 1981 e1989.
[16] Orenthal James Simpson, famoso ex-jogador de futebol americano, ficou celebre também por um longo júri, que virou show de televisão, em que foi o réu pelo assassinato de sua ex-mulher.
[17] Ciclone que, em 2005, arrasou com grande parte de Nova Orleães e mostrou a pobreza daquela cidade, nas periferias, eminentemente afro-americana.
[18] Hillary Rodham Clinton, nascida em Chicago, em 1947, é senadora pelo estado de Nova York. Disputa com Barack Obama a indicação como candidata do Partido Democrata à Presidência dos EUA.
[19] John Sidney McCain III, nasceu na Zona do canal do Panamá, em 29 de agosto de 1936, é um político americano, membro do Partido Republicano. É senador pelo estado do Arizona desde 1987.
[20] Martin Luther King, Jr. (1929-1968).