Antes tarde...

 

José Luiz Pereira da Costa

 

 

 

            Possivelmente, 1961. Deveria escrever nas costas das fotografias, pelo menos, o ano corrente. Mas, em não o fazendo, os referenciais a seguir, quase garantem essa certeza.

            Era um período em que nosso jornal, Última Hora, gaúcha, queria se sobrepor ao seu concorrente direto, a “Folha da Tarde”, irmã do “Correio do Povo”. Assim, Neu Reinert, Nestor Fedrizzi e Ivo Correia Pires, comandantes locais, se empenhavam em mostrar ao patrão, Samuel Wainer, sua capacidade de imporem-se na nova fronteira da empresa carioca. Não imaginavam que uma serie de erros estratégicos na empresa concorrente, Caldas Júnior,  viriam a atingir, adiante, não só a “Folha da Tarde”, mas o próprio “Correio do Povo”, tornando hegemônica a sucessora de Ultima Hora, a atual “Zero Hora”.

            Lembro-me haver sido destacado para uma das inúmeras reportagens de grande efeito, esta cuidando de remédios velhos ou condenados vendidos em farmácias do interior do Estado. Com o fotógrafo Gaston Guglielme fui a Caçapava do Sul. No caminho, no rádio da viatura ouvimos algo notável, assunto para o resto da viagem: Iuri Gagarin, um russo, estava no espaço, tornando-se o primeiro astronauta. Portanto,  essa viagem a Caçapava ocorreu em abril de 1961.

            Inúmeras as ousadias de Última Hora. Entre elas: Um transformista que se dizia ter os órgãos femininos levou-me com fotógrafo a Capinzal, Santa Catarina, onde nascera. Gerou uma série de reportagens que venderam muito jornal e chegaram a lugar algum. Ou fotografar carteiros desonestos queimando cartas num terreno baldio, quando copiei o cinema e intitulei “Festim Diabólico”, também com grande sucesso. Era o jornalismo popular e apelativo.

Então, de Rio Grande, chegou a notícia do correspondente, segundo a qual se encontrava à morte um menino, vitima de encefalite. E, dava ênfase, o representante local, remédio para tal doença só havia nos Estados Unidos.

            O Ivo deu-me o encargo da matéria, me orientando buscar algum tipo de informação médica. Cheguei a um especialista através das ligações que caracterizam nossa atividade. Era um senhor, o médico. Quero dizer, na avaliação da época, eu na casa dos vinte e ele, quem sabe, na dos trinta. Muito professoral, abarrotou-me de dados sobre a doença, sintomas, pesquisas, medicações – subsídios bastantes para eu escrever um amplo relato que o copidesque da época, o Floriano ou o Ibsen[1],  transformou em algo legível ao estilo do jornal. Assim ficaria tudo não fosse o seguinte: Recém havia nascido meu primeiro filho. Da reunião com o médico, à noite mal dormida, via a perspectiva sombria de ter o meu filho atacado pela mesma doença. O sofrimento da família, lá no Rio Grande, transformava-se também no meu próprio sofrimento, levados também à minha jovem esposa. As angústias que passei a experimentar, imaginava-as magnificadas na situação real, não imaginária, de quem não via horizonte a cura de seu filho.

            O dia seguinte trazia novas folhas do jornal que seriam velhas amanhã, num armazém qualquer a embrulhar gêneros. Mas naquele alvorecer, dinâmicas, encapadas num colorido azul chamativo, eram a novidade, apregoada nas esquinas pelos jornaleiros.  Alguém, em especial, atendeu ao pregão do menino vendedor. Folheou as páginas daquela específica Última Hora. Leu minha peça, alegorizada profissionalmente pelo copidesque. Continha, a mais, a decisão da diretoria do jornal de que seria pleiteado junto à VARIG para que o remédio aconselhado pelo médico especialista fosse trazido dos Estados Unidos.        

            A matéria seguinte que eu deveria fazer, seria entrevistar alguém da direção da VARIG para, em nome do jornal, apelar fosse comprado e trazido do exterior o medicamento.

            Um telefonema interrompeu minha ação. O Ivo me informou que eu deveria visitar uma família que morava na Avenida João Pessoa, mais ou menos em frente à minha Faculdade de Direito. Por alguma razão, perdida nestes mais de quarenta anos, não sei o nome das pessoas ou a razão pela qual tinham o remédio indicado. Apenas imagino. Dispuseram-se a entregar caixas da droga para ajudar a família rio-grandina.

            Era um novo tipo de jornalismo que a Última Hora impunha ao mercado gaúcho. Neu Reinert, o diretor, não hesitou em contratar um pequeno avião, táxi aéreo, e  mandou que eu levasse o remédio até Rio Grande, complementando a matéria.

            Não sei se as pessoas envolvidas neste episódio um dia tomarão conhecimento do que escrevo agora, mas confesso, numa revelação que é uma constatação e, talvez, um pedido tardio de desculpas. Eu tinha, como já disse antes, vinte e seis anos. A luta diuturna, num mundo dinâmico e disputado como a redação de um jornal como era aquele, fez com que os novos desafios do dia seguinte, e do posterior, e do ainda ulterior, tornassem o drama da encefalite daquelas famílias página de meu meio de vida, então.

            Não fiquei sabendo se as duas famílias – uma delas seguramente –  infelicitadas pela encefalite superaram seu drama. Repito: quarenta anos após, sinceramente, desejo que sim. Não importa se piegas possa parecer esse voto.

 

 

 

 

Outubro, 2006.



[1] Floriano Soares e Ibsen Pinheiro.